segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Poesia de Manuel Alegre

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Transcrevo alguma poesia do poeta Manuel Alegre. Não são os poemas mais conhecidos, apesar de gostar deles; mas dos desconhecidos, aqueles que prefiro partilhar. O poeta Manuel Alegre faz parte dos poetas portugueses que mais se destacam na Poesia Portuguesa pelo seu mérito. São poemas que se encontram no livro “30 Anos de Poesia” da Publicações Dom Quixote, 2.a edição, 1997.

Regresso (p.167)
E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calecute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.

É preciso um país (p.168)

Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.

Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.

Portugal em Paris (p.189)

Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente solitário
nas ruas de Paris.

Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de Paris.

Lusíada exilado (p.199)
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.

Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.

(...)
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.

Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.

Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.

Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.

Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.

Pátria expatriada (p.191)
Procuras Portugal em Portugal
e não o encontras e não o vês
lá onde o mal
se afina e o bem se dana e Portugal
já não é português.

Procuras Portugal e andas com ele
nos mil destinos do teu destino.
Dói-te na pele.
Babilónia Sião Paris Babel
meu povo peregrino.

Seja Babel a Torre Eiffel. Paris
a Babilónia. Sempre Sião
é uma raíz
que dói. Meu Portugal: pátria sem pão
de país em país.

Em chão estrangeiro a dor por ministério.
Pátria exportada: Império novo
ou cemitério?
E o estrangeiro é meu povo.

Canta dentro de mim pátria exilada
com tua fome com teu cansaço
e revoltada
descalça em minha voz nua em meu braço
meu canto minha espada.

(...)
Povo que foste ao mar onde colheste
teu fruto amargo: pátria de sal.
E o mar é este:
procuras pelo mundo o Portugal
que em Portugal perdeste.

(...)
Abre dentro de mim a longa estrada.
Teu coração navio ou asa
teu braço o arado tua mão a espada
vamos: é tempo de voltar a casa.

Porque tiveste o mar nada tiveste.
A tua glória foi teu mal.
Não te percas buscando o que perdeste:
procura Portugal em Portugal.


Correio (p.211)
Chegam cartas. Chegam pedaços
do meu país.
Chegam vozes. Chega um silêncio que me diz
as revoltas as lágrimas os cansaços.
Chegam palavras que me apertam nos seus braços.
Chegam notícias do meu país.

(...)
Chegam palavras com guitarras de Lisboa
chegam palavras que me sentam à sua mesa
para falar das nossas coisas: trigo e tristeza.
trevo e sal.
Chegam palavras que me trazem vinho e boroa.
Chegam palavras que me trazem Portugal.


Ser e não ser (p.221)
«Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca»
Shakespeare, “Hamlet”

Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Até quando? Até quando?


Letra para um hino (p.234)
É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar, não tenhas medo: canta!

É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser (mulher e) homem.
É possível ser livre livre livre.


O poeta (p.268)
Quando um homem se põe a caminhar
deixa um pouco de si pelo caminho.
Vai inteiro ao partir repartido ao chegar.
O resto fica sempre no caminho
quando um homem se põe a caminhar.

Fica sempre no caminho um recordar
fica sempre no caminho um pouco mais
do que tinha ao partir do que tem ao chegar.
Fica um homem que não volta nunca mais
quando um homem se põe a caminhar.

Vão-se os rios sem margens para o mar.
Ai rio da memória: só imagens.
O mais é só um verde recordar
é um ficar (sem as levar) nas verdes margens
quando um homem se põe a caminhar.


Velho (p.287)
Todo o homem tem um navio no coração
todo o homem tem um navio
tem um país a descobrir em cada mão
tem um rio no sangue tem um rio
todo o homem tem um navio no coração.

Todo o homem tem um onde e tem um quando
um tempo de partir um tempo de voltar
sete palmos na terra mil caminhos no mar.
Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra.
E tem um tempo em que se mostra.
E tem um tempo em que se esconde.
Todo o homem tem um por e tem um contra.
Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra:
todo o homem tem um quando e tem um onde.

O sétimo soneto do Português Errante (p.397-8)
Eu sou o bem amado o mal amado
país a quem dei tudo e me rejeita
país que só me quer crucificado
porque não sou de tribo nem de seita.

O coração lhe dei na mão direita
e em troca tive os cravos da paixão
país a quem dei tudo e me rejeita
país por quem fui sim e me diz não.

Já seu nome escrevi como quem reza
quando tudo era longe e a porta estreita
país a que chamei país amado.

O coração lhe dei na mão direita
e estou de pé no cimo da tristeza
país que só me quer crucificado.


A António Sérgio
Tu não propunhas solução;
Interrogavas.


Tu despiste a casaca do Absoluto
E vieste arranhar-te nas pedras vivas.

Tu vieste dizer que o rei vai nu
E estavas contra em tempo de ser por.


Tu chegavas à porta da evidência
Pelos caminhos do talvez.


Demolidor do mito e da certeza
Abriste as avenidas da discussão
Nesta apagada e vil tristeza.


E quando outros em nome da fé
Matavam com fé a nossa crença,
Tu disseste que todo o dogma é uma doença
E ensinaste-nos a crença do porquê.


Poemas escritos por Manuel Alegre
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Uma jornalista pergunta a um alentejano, já reformado que se encontrava sentado junto à sua casa:

O senhor, se não tivesse emigrado, o que tinha?
O que tinha? Tinha o mesmo que têm os outros que não emigraram: tinha o dia p'ra andar por aí e a noite p'ra dormir.

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terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Os dois mundos" de Platão

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Os dois mundos – A alegoria da caverna de Platão


Hoje transcrevo parte do livro “A República” escrito por Platão da Guimarães Editores, vol. VII, pp.10-17. Platão que nasceu no ano 427a.C. e morreu no ano 347a.C.:


“(...) - Depois disto – continuei – imagina tu, Glauco, a nossa natureza, segundo é ou não esclarecida pela cultura em comparação com uma situação tal como esta: imagina homens que vivem numa morada subterrânea em forma de caverna, cuja entrada está aberta à luz a todo o comprimento. Eles encontram-se ali desde a infância, com as pernas e o pescoço presos por correntes, de tal maneira que não podem mudar de posição, nem ver senão o que está à sua frente, pois as cadeias que os prendem impedem-nos de virar a cabeça. Por detrás deles brilha, vinda de longe e do alto, a luz de um fogo. Entre esse fogo e os prisioneiros supõe uma ladeira íngreme, ao longo da qual foi construído um pequeno muro, semelhante ao tabique que os exibidores de fantoches colocam entre eles e o público e acima do qual mostram as suas atracções.

- Estou a ver.

- Imagina, então, ao longo desse pequeno muro, homens transportando objectos de toda a espécie e de todas as formas – figuras de homens e de animais, de pedra ou de madeira – que o ultrapassam; como é natural, entre esses carregadores alguns falam e outros passam em silêncio.

- Que estranho quadro e que estranhos prisioneiros!

- Eles assemelham-se-nos. Acreditas que esses homens, nesta situação, não têm de si próprios e uns dos outros, senão a visão das sombras que o fogo faz projectar sobre a parte da caverna que lhes fica em frente?

- Como poderia ser de outra maneira, se são forçados, toda a vida, a conservar a cabeça imóvel?

- E com os objectos que desfilam não acontece o mesmo?

- Sem dúvida!

- Por consequência, se eles conseguissem falar entre si, não te parece que julgariam nomear os objectos reais ao nomearem as sombras que vissem?

- Com certeza.

- E se, além disso, houvesse um eco que projectasse os sons da parede do fundo da prisão; não é verdade que, todas as vezes que um daqueles que passam ao longo do muro falasse, eles tomariam a sua voz pela sombra que desfilasse?

- Sim.

- É indubitável que, para homens em tais condições, a realidade não seria mais do que as sombras projectadas pelos objectos fabricados.

- Forçosamente.

- Supõe, então, como eles reagiriam se fossem libertados das suas correntes e curados da sua ignorância e se as coisas se passassem assim: que se liberte um desses prisioneiros, que o forcem subitamente a erguer-se, a voltar o pescoço, a andar, a olhar para a luz; tudo isso o fará sofrer e, ofuscado pela claridade, não será capaz de olhar os objectos de que há pouco apenas via sombras. Pergunto-te: que poderá ele responder se lhe disserem que tudo quanto vira, eram apenas vãs aparências, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objectos mais reais, ele vê de maneira mais certa? Se, por fim, lhe mostrassem cada um dos objectos que desfilavam diante dele e o obrigassem, à força de perguntas, a dizer o que eram, não te parece que ficaria embaraçado e que as sombras que via antes lhe pareciam mais verdadeiras do que os objectos que lhe mostravam agora?

- Muito mais verdadeiras.

- E se o forçassem a olhar a própria luz, não te parece que os seus olhos ficariam doridos e que se esquivaria e se voltaria para as coisas que podia olhar e lhes atribuiria maior realidade do que àquelas que lhe mostravam?

- Sim.

- E se o arrancassem da caverna e o fizessem subir a escarpada encosta e o não largassem senão depois de o terem arrastado para a luz do sol; não pensas que ele sofreria e se revoltaria de ser assim arrastado e que, uma vez em plena luz do dia, ficaria deslumbrado pela claridade, incapaz de ver um só dos objectos que lhe apresentassem como verdadeiros?

- Seria incapaz, pelo menos de momento.

- Com efeito, deveria habituar-se até chegar a ver os objectos que se encontram no mundo superior. Primeiro, distinguiria mais facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objectos reflectidos nas águas e só então os próprios objectos. Depois disso, elevando o olhar para a luz dos astros e da lua, contemplaria, durante a noite, os corpos celestes e o próprio firmamento mais facilmente do que, durante o dia, o sol e o seu brilho.

- Sem dúvida.

- Por fim, penso, seria capaz de olhar e contemplar o sol no seu próprio lugar tal como ele é e não a sua imagem reflectida nas águas ou em qualquer outro local.

- Com certeza.

- Então, concluiria a respeito do sol que ele é que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que é, de certo modo, a causa de tudo quanto ele e os seus companheiros viam na caverna.

- É evidente que chegaria a essa conclusão depois das suas experiências.

- Se, em seguida, se lembrasse da sua primeira morada e do conhecimento que ele e os seus companheiros ali possuíam, não te parece que se regozijaria com a mudança e que os lastimaria?

- Decerto.

- Quanto às honras e aos elogios que podiam então conceder-se mutuamente e às recompensas dadas àquele que distinguisse da maneira mais penetrante os objectos que passavam, que lembrasse mais exactamente os que passaram regularmente, em primeiro ou em último lugar, ou em conjunto e que assim fosse o mais hábil a adivinhar o que viria em seguida, pensas tu que esse homem teria inveja e ciúmes daqueles que entre os prisioneiros, tivessem essas honras e poder? Não pensaria ele como Aquiles em Homero e não preferiria cem vezes «ser apenas um moço de charrua ao serviço de um pobre camponês» e suportar todos os males a voltar às suas antigas ilusões e a viver como vivia?

- Sou da tua opinião, preferiria tudo sofrer a reviver aquela vida.

- Imagina ainda, se o nosso homem tornasse a descer à caverna e retomasse o seu antigo lugar; não ficaria ele ofuscado pelas trevas, vindo bruscamente da luz para a escuridão?

- Com certeza!

- E se tivesse de novo de discriminar as antigas sombras e discuti-las com os prisioneiros que nunca deixaram as suas cadeias, enquanto a sua vista estivesse ainda confusa e antes que os seus olhos se tivessem acostumado à escuridão, o que levaria um certo tempo, não seria ele motivo de troça? Não diriam os outros que, por ter ascendido às alturas, tinha vindo com os olhos alterados e que não merecia a pena a ascensão? E se alguém tentasse libertá-los e conduzi-los para o alto, não te parece que se pudessem agarrá-lo e matá-lo, o fariam?

- Certamente que o matariam.

- Agora é preciso, meu caro Glauco, aplicar exactamente esta imagem àquilo que dissemos; é preciso identificar o mundo visível com a estada na prisão e a luz do fogo que a iluminava com o efeito do sol. Quanto à subida para o mundo superior e à contemplação das suas maravilhas, vê tu aí a ascensão da alma para o mundo inteligível e não te enganarás sobre o meu pensamento, já que desejas conhecê-lo. Deus sabe que ele é verdadeiro! Em todo o caso, é minha opinião que nos últimos limites do mundo inteligível está a ideia do Bem, que a custo apercebemos, mas que não podemos apreender sem concluir que ela é a causa universal de tudo o que há de bom e de belo; que no mundo visível foi ela que criou e espalha a luz que no mundo inteligível é a causa da verdade e da inteligência e que é preciso vê-la para que se proceda com sageza, quer na vida privada, quer na vida pública.

- Sou da mesma opinião, tanto quanto posso seguir o teu pensamento.

- Pois bem, sê ainda da minha opinião sobre este ponto: não é de admirar que aqueles que se elevaram até ela não estejam mais dispostos a interessar-se pelos assuntos humanos e que as suas almas aspirem, sem cessar, a conservar-se naquelas alturas; pelo contrário, é bem natural, se o relacionarmos com a nossa alegoria.

- Bem natural, com efeito.

- Mas, pensas que nos devemos admirar se alguém, passando dessas contemplações divinas às miseráveis realidades da vida humana, se sentir constrangido e mesmo ridículo quando, tendo a vista perturbada e não estando suficientemente habituado às trevas aonde acaba de cair, tiver de entrar em discussão nos tribunais ou em qualquer outro lugar, sobre as sombras e de combater as interpretações daqueles que nunca viram a justiça em si mesma?

- Não, não é de admirar.

- Se fôssemos sensatos, lembrar-nos-íamos de que os olhos são perturbados de duas maneiras e por duas causas opostas: pela passagem da luz para a escuridão e pela da escuridão para a luz. Então reflectindo que estes dois casos se aplicam também à alma, quando víssemos uma alma perturbada e impotente para discernir um objecto, em lugar de rirmos sem razão, examinaríamos se, ao sair de uma vida mais luminosa, ela fica, por falta de hábito, ofuscada pelas trevas ou se, vindo da ignorância à luz, ela ficará deslumbrada por um demasiado esplendor. No primeiro caso, devíamos felicitá-la pelo seu embaraço e pela maneira como empregou a sua vida; no segundo, lastimá-la-íamos e, se quiséssemos rir à sua custa, o riso seria menos ridículo do que o que recairia sobre a alma que desce da luz.

- Essa é uma distinção muito justa.

- É preciso, pois, se tudo isto é verdadeiro, tirar a seguinte conclusão: a educação não é aquilo que muitos proclamam. Pretendem, com efeito, depositar o saber na alma, onde ele não existe, como se se introduzisse a visão em olhos cegos.

- Com efeito, é o que pretendem.

- Ora as presentes considerações mostram que toda a alma possui em si mesma esta faculdade de adquirir conhecimento e um órgão próprio para isso e, assim como a vista não pode voltar-se da obscuridade para a luz, senão voltando todo o corpo ao mesmo tempo, também é com a alma toda que se deve desviar a visão das coisas perecíveis até que ela seja capaz de suportar a vista do ser e da parte mais luminosa do ser a que se chama Bem, não é verdade?

- Sim.

- A educação é a arte de orientar a visão da alma, da maneira mais fácil e mais eficaz. Não consiste em dar a visão ao órgão que já a possui, mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deve, ela prepara a sua conversão.

- É o que parece.

- Agora podemos admitir que as outras faculdades, chamadas faculdades da alma, são análogas às do corpo, pois é certo que, quando faltam de início, pode-se adquiri-las em seguida, por meio do hábito e do exercício. Mas há uma, a faculdade de conhecer, que parece ter alguma coisa de divino e que não perde nunca o seu poder e que, conforme a orientação que lhe damos, se torna útil e vantajosa ou inútil e prejudicial. Não reparaste ainda, a propósito dos desonestos, mas espertalhões, como o seu miserável espírito é penetrante e distingue claramente as coisas para as quais se volta? Ele não tem pouca clarividência, mas põe-na ao serviço da sua desonestidade de modo que, quanto maior é a penetração do seu olhar, pior mal causará.

- Assim é, com efeito.

- E, no entanto, se desde a infância se agisse sobre a alma assim disposta pela natureza e se a desembaraçássemos de tudo o que, como massas de chumbo, a torna pesada e que é inato e que, ligado à alma pelos laços dos festins, dos prazeres e dos apetites deste género, a orienta para o que é inferior; se, desembaraçada desse peso, a orientássemos para a verdade, esta mesma alma, nos mesmos homens, veria a verdade com muito maior clareza, tal como vê as coisas para as quais está presentemente orientada.

- Assim é.

- Não é também verosímil e necessário, em consequência do que dissemos, que não são aptos para o governo do Estado nem aqueles que não têm educação e conhecimento da verdade, nem os que dedicam toda a sua vida ao estudo; uns porque não têm na sua vida nenhum ideal segundo o qual possam orientar os seus actos, particulares ou públicos, e os outros porque nunca acederão a ocupar-se disso, pois que se julgam já instalados nas ilhas da bem-aventurança?

- É verdade.”❐

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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Principezinho de Saint-Exupéry

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Do livro "O principezinho" de Antoine de Saint-Exupéry. Editora Caravela.


(diálogo entre o principezinho e a raposa)
« (...)
- O que é que “estar preso” quer dizer?
- Vê-se logo que não és de cá - disse a raposa. - De que é que tu andas à procura?
- Ando à procura dos homens – disse o principezinho. - O que é que “estar preso” quer dizer?
- Os homens têm espingardas e passam o tempo a caçar – disse a raposa. - É uma grande maçada! E também fazem criação de galinhas! Aliás, na minha opinião, é a única coisa interessante que eles têm. Andas à procura de galinhas?
- Não – disse o principezinho. - Ando à procura de amigos. O que é que “estar preso” quer dizer?
- É uma coisa que toda a gente esqueceu – disse a raposa. - Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
- Laços?
- Sim, laços – disse a raposa. - Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também passo a ser única no mundo ... (...)
A raposa calou-se e ficou a olhar durante muito tempo para o principezinho.
- Por favor, ... prende-me a ti! - acabou finalmente por dizer.
- Eu bem gostava – respondeu o principezinho – mas não tenho muito tempo. Tenho amigos para descobrir e uma data de coisas para conhecer ...
- Só conhecemos as coisas que prendemos a nós – disse a raposa. - Os homens, agora, já não têm tempo para conhecer nada. Compram as coisas já feitas nos vendedores. Mas como não há vendedores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, prende-me a ti!
- E o que é que é preciso fazer? - perguntou o principezinho.
- É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas-te um bocadinho afastado de mim, assim, em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto ...

O principezinho voltou no dia seguinte.
- Era melhor teres vindo à mesma hora – disse a raposa. - Se vieres, por exemplo, às quatro horas, às três, já eu começo a ser feliz. E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sentirei. Às quatro em ponto já hei-de estar toda agitada e inquieta: é o preço da felicidade!
...................
- Olá, bom dia. Disse o principezinho.
- Olá, bom dia. Disse o vendedor.
Era um vendedor de comprimidos para tirar a sede.
- Toma-se um por semana e deixa-se de ter necessidade de beber.
- Por que é que andas a vender isso? - perguntou o principezinho.
- Porque é uma grande economia de tempo - respondeu o vendedor. - Os cálculos foram feitos por peritos. Poupam-se cinquenta e três minutos por semana.
- E o que se faz com esses cinquenta e três minutos?
- Faz-se o que se quiser ...
«Eu» pensou o principezinho «eu cá, se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, punha-me era a andar muito de mansinho à procura de uma fonte …
.......................
O principezinho sobe, sobe ao cimo da montanha.
As únicas montanhas que conhecera eram os três vulcões que não passavam acima dos joelhos.
Servia-se do vulcão apagado como de um palco.
“Do cimo de uma montanha tão alta como esta – pensou ele – com um olhar abarcarei todo o planeta e todos os homens.”
Porém, nada mais viu do que os picos aguçados das rochas.
Bom dia – disse para ver o que aconteceria.
Bom dia … bom dia … bom dia … respondeu o eco.
Tu quem és? - perguntou o principezinho.
Tu quem és? … Tu quem és? … Tu quem és? … respondeu o eco.
Somos amigos; eu estou só. - disse ele.
Eu estou só … eu estou só … eu estou só …. - respondeu o eco.
.......................
Tenho boas razões para pensar que o planeta de onde o principezinho vinha era o asteróide B 612. Este asteróide foi visto ao telescópio uma única vez, em 1909, por um astrónomo turco.
Nessa altura, o cientista apresentou uma grande exposição da sua descoberta a um Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém o levou a sério por causa da maneira como estava vestido. As pessoas grandes são assim.
Felizmente que, para a boa reputação do asteróide B 612, um ditador turco se lembrou de impor ao seu povo, mas impor-lhe sob pena de morte, que trajasse à europeia. O astrónomo voltou a fazer a sua demonstração em 1920, mas agora muito bem vestido. E toda a gente a aceitou.


Só vos contei tudo sobre o asteróide B 612 e só vos confiei o seu número por causa das pessoas grandes. As pessoas grandes gostam de números. Quando vocês lhes falam de um amigo novo, as suas perguntas nunca vão ao essencial. Nunca vos perguntam: «Como é a voz dele? De que brincadeiras é que ele gosta mais? Ele faz colecção de borboletas?» Mas perguntam: «Que idade é que ele tem? Quantos irmãos tem? Quanto é que ele pesa? Quanto ganha o pai dele?» Só assim é que eles pensam ficar a conhecê-lo. Se vocês disserem às pessoas grandes: «Hoje vi uma casa muito bonita de tijolos cor-de-rosa, com gerânios nas janelas e pombas no telhado ...», as pessoas grandes não a conseguem imaginar. É preciso dizer-lhes: «Hoje vi uma casa que custou vinte mil contos.» Então, já são capazes de exclamar: «Mas que linda casa!»
Assim, se lhes disserem: «A prova de que o principezinho existiu é que ele era encantador; é que ele se ria e queria uma ovelha.» Querer uma ovelha é a prova de que existe, as pessoas grandes encolhem os ombros e chamam-vos crianças! Mas se lhes disserem: «O planeta donde ele vinha era o asteróide B 612», as pessoas grandes ficam logo convencidas e não se põem a fazer mais perguntas. As pessoas grandes são assim. Não vale a pena zangarmo-nos com elas. As crianças têm de ser muito indulgentes para com as pessoas grandes.
Mas nós, nós que entendemos a vida, claro que nos estamos bem nas tintas para os números! Eu gostava era de ter começado esta estória como um conto de fadas. Assim:
«Era uma vez um principezinho que vivia num planeta um pouco maior do que ele e precisava de um amigo ...» Para quem entende a vida, era de certeza um começo bem mais verosímil.
Porque eu não gostaria que este livro fosse lido levianamente.❐
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