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Transcrevo alguma poesia do poeta Manuel Alegre. Não são os poemas mais conhecidos, apesar de gostar deles; mas dos desconhecidos, aqueles que prefiro partilhar. O poeta Manuel Alegre faz parte dos poetas portugueses que mais se destacam na Poesia Portuguesa pelo seu mérito. São poemas que se encontram no livro “30 Anos de Poesia” da Publicações Dom Quixote, 2.a edição, 1997.
Regresso (p.167)
E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.
Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.
Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.
De Calecute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.
É preciso um país (p.168)
Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.
Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.
Portugal em Paris (p.189)
Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente solitário
nas ruas de Paris.
Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de Paris.
Lusíada exilado (p.199)
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
(...)
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
Pátria expatriada (p.191)
Procuras Portugal em Portugal
e não o encontras e não o vês
lá onde o mal
se afina e o bem se dana e Portugal
já não é português.
Procuras Portugal e andas com ele
nos mil destinos do teu destino.
Dói-te na pele.
Babilónia Sião Paris Babel
meu povo peregrino.
Seja Babel a Torre Eiffel. Paris
a Babilónia. Sempre Sião
é uma raíz
que dói. Meu Portugal: pátria sem pão
de país em país.
Em chão estrangeiro a dor por ministério.
Pátria exportada: Império novo
ou cemitério?
E o estrangeiro é meu povo.
Canta dentro de mim pátria exilada
com tua fome com teu cansaço
e revoltada
descalça em minha voz nua em meu braço
meu canto minha espada.
(...)
Povo que foste ao mar onde colheste
teu fruto amargo: pátria de sal.
E o mar é este:
procuras pelo mundo o Portugal
que em Portugal perdeste.
(...)
Abre dentro de mim a longa estrada.
Teu coração navio ou asa
teu braço o arado tua mão a espada
vamos: é tempo de voltar a casa.
Porque tiveste o mar nada tiveste.
A tua glória foi teu mal.
Não te percas buscando o que perdeste:
procura Portugal em Portugal.
Correio (p.211)
Chegam cartas. Chegam pedaços
do meu país.
Chegam vozes. Chega um silêncio que me diz
as revoltas as lágrimas os cansaços.
Chegam palavras que me apertam nos seus braços.
Chegam notícias do meu país.
(...)
Chegam palavras com guitarras de Lisboa
chegam palavras que me sentam à sua mesa
para falar das nossas coisas: trigo e tristeza.
trevo e sal.
Chegam palavras que me trazem vinho e boroa.
Chegam palavras que me trazem Portugal.
Ser e não ser (p.221)
«Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca»
Shakespeare, “Hamlet”
Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.
Até quando? Até quando?
Letra para um hino (p.234)
É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar, não tenhas medo: canta!
É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!
É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser (mulher e) homem.
É possível ser livre livre livre.
O poeta (p.268)
Quando um homem se põe a caminhar
deixa um pouco de si pelo caminho.
Vai inteiro ao partir repartido ao chegar.
O resto fica sempre no caminho
quando um homem se põe a caminhar.
Fica sempre no caminho um recordar
fica sempre no caminho um pouco mais
do que tinha ao partir do que tem ao chegar.
Fica um homem que não volta nunca mais
quando um homem se põe a caminhar.
Vão-se os rios sem margens para o mar.
Ai rio da memória: só imagens.
O mais é só um verde recordar
é um ficar (sem as levar) nas verdes margens
quando um homem se põe a caminhar.
Velho (p.287)
Todo o homem tem um navio no coração
todo o homem tem um navio
tem um país a descobrir em cada mão
tem um rio no sangue tem um rio
todo o homem tem um navio no coração.
Todo o homem tem um onde e tem um quando
um tempo de partir um tempo de voltar
sete palmos na terra mil caminhos no mar.
Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra.
E tem um tempo em que se mostra.
E tem um tempo em que se esconde.
Todo o homem tem um por e tem um contra.
Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra:
todo o homem tem um quando e tem um onde.
O sétimo soneto do Português Errante (p.397-8)
Eu sou o bem amado o mal amado
país a quem dei tudo e me rejeita
país que só me quer crucificado
porque não sou de tribo nem de seita.
O coração lhe dei na mão direita
e em troca tive os cravos da paixão
país a quem dei tudo e me rejeita
país por quem fui sim e me diz não.
Já seu nome escrevi como quem reza
quando tudo era longe e a porta estreita
país a que chamei país amado.
O coração lhe dei na mão direita
e estou de pé no cimo da tristeza
país que só me quer crucificado.
A António Sérgio
Tu não propunhas solução;
Interrogavas.
Tu despiste a casaca do Absoluto
E vieste arranhar-te nas pedras vivas.
Tu vieste dizer que o rei vai nu
E estavas contra em tempo de ser por.
Tu chegavas à porta da evidência
Pelos caminhos do talvez.
Demolidor do mito e da certeza
Abriste as avenidas da discussão
Nesta apagada e vil tristeza.
E quando outros em nome da fé
Matavam com fé a nossa crença,
Tu disseste que todo o dogma é uma doença
E ensinaste-nos a crença do porquê.
Poemas escritos por Manuel Alegre
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Uma jornalista pergunta a um alentejano, já reformado que se encontrava sentado junto à sua casa:
O senhor, se não tivesse emigrado, o que tinha?
O que tinha? Tinha o mesmo que têm os outros que não emigraram: tinha o dia p'ra andar por aí e a noite p'ra dormir.
mailto:maria.c.figueiras.portugal@gmail.com
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