sexta-feira, 30 de julho de 2010

A Língua Portuguesa

10 de Fevereiro de 2003
As línguas, nos primórdios, eram apenas orais. Não havia dicionários e aquando das invasões, os invasores não queriam saber da língua nativa daquele território para nada. Os vencidos que se preocupassem em tentar percebê-los e se não eram capazes disso, mais uma cabeça menos uma cabeça pouca diferença faria. Assim a mesma palavra em lugares diferentes tem significados diferentes de acordo como essa palavra era entendida foneticamente e como era apreendido o seu significado pelos receptores. Quanto à construção das frases então nem falar. Era a mais completa anarquia.
Por exemplo no latim nunc significa em português agora, mas temos a palavra em português nunca e podemos perceber a semelhança oral. Se quisermos pôr a nossa imaginação a funcionar podemos imaginar um soldado romano a ordenar a um nativo ibérico: nunc, nunc. O nativo olha para o soldado, olha para onde ele apontava e pensando perceber que é para fazer, toca-lhe com o pé para sentir o que é. O soldado, pensando que ele não percebeu nada, volta a gritar-lhe: - nunc, nunc.
Como o nativo recua, o soldado afasta-se gritando: - bestiá. O nativo sai dali a caminho de casa e encontra outros nativos que lhe perguntam:
- Então, que tal o romano?
- Não é má pessoa. Grita muito, mas isso deve ser da raça. Olha, já aprendi com ele duas palavras: nunca e bestial.
Duas palavras que os amigos agora já conhecem e vão passar a usar para ensinar aos outros.
Com a introdução da escrita, a língua de uma determinada região passou a ser analisada por curiosos que ensinavam a sua língua na corte e, pela necessidade, foram-se criando cadernos de palavras sinónimas nas duas línguas e, a pouco e pouco, chegou-se aos dicionários.
Também pela necessidade foi-se estruturando a língua de maneira a que fosse possível criar regras para que o estrangeiro a pudesse falar, expressar-se e ser compreendido, pois já não se tratava de uma relação de vencedores e vencidos.
Quando actualmente se foge à norma porque não a conhecemos e, não querendo fazer figura de ignorantes, afirmamos que assim é que é; estamos a demonstrar exactamente isso que se pretende esconder.
As normas são importantes para que as crianças aprendam a se saber exprimir na sua língua e a serem compreendidas e, por outro lado, as normas são necessárias para os estrangeiros aprenderem a nossa língua e cada um se possa fazer entender nesta aldeia global sem perder a sua cultura e a sua maneira de estar no mundo e a língua materna é esse veiculo.❐

domingo, 25 de julho de 2010

Poemas Escolhidos de Sophia Andresen

Relendo a Obra Poética I de Sophia de Mello Breyner Andresen estes são os poemas que com dificuldade seleccionei. Poemas escritos em 1947:
CORPO A CORPO
Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde nunca ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça. (p.57)
RECONHECI-TE
I
Reconheci-te logo destruída
Sem te poder olhar porque tu eras
O próprio coração da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas
II
Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim é que eu fui triste
Sempre. Tu depois só me destruíste
Com os teus passos mais reais que os meus. (p.130)
QUANDO
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta.
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta. (p.145)
Passo a transcrever poemas escritos em 1950:
EU CHAMEI-TE PARA SER
Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei. (p.161)
SONETO
Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.
Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.
Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas do oceano. (p.185)
INVENTEI
Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender. (p.242)
Do livro O Tempo Dividido de 1954
IV
Por que será que não há ninguém no mundo
Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar
E todos a contarem o futuro
Como se fosse o único presente
Olhos criavam outras as imagens
Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança ❐
VII
Como é estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio p’ra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber ❐
Assim os claros filhos
Assim os claros filhos do mar largo
Atingidos no sonho mais secreto
Caíram de um só golpe sobre a terra
E foram possuídos pela morte.❐
Dia
Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia. ❐
Primeira liberdade
Eu falo da primeira liberdade
Do primeiro dia que era mar e luz
Dança, brisa, ramagens e segredos
E um primeiro amor morto tão cedo
Que em tudo que era vivo se encarnava. ❐
Praia
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de braços. ❐
Saga
Aos outros dei aquilo que não eram
E por isso depois me arrependi.
Um homem morto em tudo o que perdi –
E olhos que são meus e não me esperam. ❐
Promessa
Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade. ❐
Santa Clara de Assis
Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.
Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida;
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.❐
Do livro MAR NOVO de 1958
Cante Jondo
Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.❐
O teu rosto
Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte
Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido. ❐
Profetas falsos
Profetas falsos vieram em teu nome
Anjos errados disseram que tu eras
Um poema frustrado
Na angústia sem razão das primaveras
Porém eu sei que tu és a verdade
E és o caminho transparente e puro
Embora eu não te encontre e no obscuro
Mundo das sombras morra de saudade. ❐
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua. ❐
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não. ❐

domingo, 18 de julho de 2010

LAGOS por Sophia Andresen

Apresentação
Desde a minha infância, juventude me lembro de ler a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e sempre gostei da sua maneira feminina, intimista, simples de escrever algo tão difícil como poesia; só acessível aos dotados para isso.
No entanto essa leitura, porque dispersa, não me deu a conhecer a portuguesa-poeta Sophia que já faz parte do grupo dos poetas imortais portugueses. Ao ler a sua Obra Poética em três volumes apercebi-me da grande riqueza interior que possuía.
A sua vida percorre duas grandes fases sempre em continuum e Lagos é o marco de viragem na sua vida ou a pessoa que a ligou a Lagos ou as duas simultaneamente.
A primeira fase da sua vida está ligada à Esperança, ao etéreo, a «adivinhos, mágicos e deuses»1 e ela vai crescendo interiormente até à ruptura ligada a grande sofrimento e à morte do seu ente querido que a atinge em pleno psicologicamente. Faz o luto. Muda de mundo; amigos surgem (não por acaso) e o amor (diferente) e Deus entram na sua vida e em Lagos descobre o rosto de Deus e a Sophia nasce de novo; a Esperança concretiza-se e ela começa a viver, a ser unidade em união e é feliz e atinge a maturidade interior.
O seu «eu» nunca tomou o comando; deixou-se sempre levar e assim fez caminho, peregrinação e alcançou a união que buscava.
No entanto o seu percurso espiritual ainda não está completo. Agora ela anseia o fazer, o concretizar, o passar das palavras aos actos. Um dia, Sophia, um dia ....
Gostei muito de revisitar os escritos de Sophia de Mello Breyner Andresen. ❐
Lagos, 09 de Novembro de 2006
Do Livro Obra Poética II in Mar Novo de 1958
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.❐
Na cidade da realidade encontrada e amada
Na cidade da realidade encontrada e amada
Caminhei com a brisa pelas ruas
Havia muros brancos e janelas pintadas
As madressilvas floriam e brilhavam
Os limoeiros de folhas polidas
Caiu uma folha de nespereira sobre o tanque
E o tempo veio ao meu encontro confundindo
Os meus gestos e os teus nos seus
Eram mil e mil noites uma após outra surgindo
E o meu rosto flutuava entre a manhã e a tarde
E as esquinas ergueram as suas sombras azuis
Ao longo de um silêncio de árabe
E do Abril dos campos veio um perfume inteiro de searas
E quando abri a porta as estrelas surgiram
Na cidade da realidade encontrada e amada
O sol dá lentamente a volta às praças e aos quartos
Para varrer o chão e preparar a noite
Que é redonda azul e atenta
E a porta da cidade é feita de dois barcos
Oh quem dirá o verde o azul e o fresco
O hálito da água e o perfume do vento
Vê-se a manhã criar uma por uma cada coisa
Vê-se quebrar a onda da noite transparente. ❐
Brisa
Que branca mão na brisa se despede?
Que palavra de amor
A noite de Maio em si recebe e perde?
Desenha-te o luar como uma estátua
Que no tempo não fica
Quem poderá deter
O instante que não pára de morrer? ❐
Do Livro Obra Poética II in Livro Sexto de 1962
Algarve
1
A luz mais que pura
Sobre a terra seca
2
Um homem sobe o monte desenhando
A tarde transparente das aranhas
3
A luz mais que pura
Quebra a sua lança. ❐
As cigarras
Com o fogo do céu a calma cai
No muro branco as sombras são direitas
A luz persegue cada coisa até
Ao mais extremo limite do visível
Ouvem-se mais as cigarras do que o mar. ❐
Pescador
1
Irmão limpo das coisas
Sem pranto interior
Sem introversão
2
Este que está inteiro em sua vida
Fez do mar e do céu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo. ❐
Barcos
Um por um para o mar passam os barcos
Passam em frente de promontórios e terraços
Cortando as águas lisas como um chão
E todos os deuses são de novo nomeados
Para além das ruínas dos seus templos. ❐
Reino
Reino de medusas e água lisa
Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa. ❐
Gruta do Leão
Para além da terra pobre e desflorida
Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca
Feita de puro interior
E povoada de cava ressonância e sombra e brilho. ❐
A vaga
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu próprio cavalo como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia. ❐
Caminho da manhã2
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas ruas estreitas, direitas e brancas até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível. ❐
As grutas
O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido – quase me cega a perfeição como um sol olhando de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e em mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à armadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetração na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.
Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras. ❐
No poema
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso
Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa.❐
Despedida
Na estação na tarde o fumo
O rumor o vaivém as faces
Anónimas
Criam no interior do amor um outro cais.
As lágrimas
O fogo da minha alma as queima antes que brotem.❐
Meio da vida
Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra
A casa compõe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida. ❐
Felicidade
Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia – por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta. ❐
Campo
Estou só nos campos
A doce noite murmura
A lua me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima. ❐
Inscrição
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar. ❐
O hospital e a praia
E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza
E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus
Não perguntei à pedra por Ti meu Senhor
Nem me lembrei de Ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
E todo o dia vivi como uma cega
Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida. ❐
A estrela
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava
Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada
A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava
Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu
E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava
E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada
Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a Terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava
E a estrela do céu parou em cima
De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza
Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado
Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto». ❐
Do livro Obra Poética III in O Nome das Coisas de 1977
A loja dos barros
Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água.
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina do ferreiro.
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas à minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.
Olho para a ânfora quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível.
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Demeter; nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orfeu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade; vamos de coisa em coisa.
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.3
LAGOS I
«Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme l’autre Lagos.»
Em Lagos
virada para o mar como a outra Lagos
muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor
a precisa limpidez de Lagos onde a limpeza
é uma arte poética e uma forma de honestidade
acorda em mim a nostalgia de um projecto
racional limpo poético
os ditadores – é sabido – não olham para os mapas
suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões
o seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos
jovens corpos mortos ao longo das extensões
na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil
aceitar o confuso o disforme a ocultação
na nitidez de Lagos onde o visível
tem o recorte simples e claro de um projecto
o meu amor da geometria e do concreto
rejeita o balofo oco da degradação
na luz de Lagos matinal e aberta
na praça quadrada tão concisa e grega
na brancura da cal tão veemente e directa
o meu país se invoca e se projecta. ❐
Lagos, 20 de Abril de 1974
LAGOS II
I
Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente
Lagos que digo como passado agora
Como verão ido absurdamente ausente
Quase estranho a mim e nunca tido
II
Foi um país que eu encontrei de frente
Desde sempre esperado e prometido
O puro dom de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente
III
Lagos lição de nitidez e riso
Onde estar vivo se torna mais completo
- como pode meu ser ser distraído
de sua luz de prumo e de projecto?
IV
Ou poderemos Abril ter perdido
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou o nosso tempo mais concreto?
Será que vamos paralelamente
Relembrar e chorar como um verão ido
O país linear e transparente
E sua luz de prumo e de projecto. ❐
Epílogo
Sophia de Mello Breyner Andresen partiu para o outro mundo neste ano de 2006. Partiu, mas ficou nos corações de muitos que a conheceram, da sua família que muito lhe queria e todos não deixarão que a sua obra se apague, desapareça do conhecimento das futuras gerações. O mundo feminino também não a pode esquecer numa época em que tudo é descartável, principalmente o que tem valor.❐
Lagos, 30 de Dezembro de 2006
1 Ela escreve no poema “Eis-me” – “Tendo-me despido de todos os meus mantos / Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses (menores acrescento eu) / Para ficar sozinha ante o silêncio / Ante o silêncio e o esplendor da Tua face (Deus) (...)
2Acredito que este texto literário terá sido na sua origem um bilhete de recados a uma amiga que se ia dirigir pela primeira vez ao Mercado Municipal de Lagos. Pelo génio literário que existia na Sophia Andresen um simples bilhete de notas tornou-se num texto literário de muita qualidade.
3Esta rua chama-se Rua da Capelinha e esta casa de barros, que era conhecida dos meus pais, actualmente é uma agência de viagens e a antiga taberna e oficina do ferreiro são actualmente uma casa de pasto.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Condelipa

Lagos, 28 de Março de 2007
Há quem diga que o conde de Lippe era um militar inglês a quem o marquês de Pombal atribuiu o cargo de comandante-em-chefe do exército português. Então, numa passagem por Lagos, tornou-se grande apreciador das conquilhas que lhe eram trazidas diariamente pelos seus soldados que as acabaram por baptizar com o seu nome.
A mim, isto parece-me uma estória forjada por algum letrado, para que pareça bonita e elegante, como era costume na época e posteriormente.
Mas, podemos pensar, raciocinar e discernir:
1º – “Lippe” só se lê lipa na língua germânica. Lip lê-se em inglês, francês, português;
2º – a outra designação que temos para condelipas é conquilhas, que é como se diz em francês;
3º – os franceses eram grandes apreciadores de bivalves, principalmente por causa das suas colónias ou porque tenham vivido nelas como é o caso dos militares por conta de França nos séculos XVIII-XIX. Não se pode dizer o mesmo dos ingleses;
4º – Se as condelipas fossem conhecidas dos algarvios antes, teriam nome português como é normal;
5º – Lagos, na altura do marquês de Pombal, não tinha grande importância militar; por isso a defesa da cidade era insignificante e de 1750 a 1777, período em que o Marquês do Pombal esteve no poder, não aconteceram nem guerras civis nem ocupações estrangeiras que justificassem numa cidade insignificante a presença de um militar estrangeiro de craveira. Além disso, pelos documentos da época deduz-se que o Marquês do Pombal não aceitava de bom grado outro poder que não fosse o seu, usando apenas aqueles da sua máxima confiança. Um oficial inglês de craveira não se encaixaria nos seus requisitos;
6º – Lagos e o Algarve foram ocupados de 1807 a 1808, pelas tropas de Napoleão como território de fronteira, (PAULA, 1992, p.176, p.366) como continuação da sua ocupação em Espanha e toda a Europa, para defender/atacar a costa algarvia da marinha dos aliados ingleses que ajudavam os portugueses a combater os exércitos de Bonaparte na campanha deste por toda a Europa para implantar grupos maçónicos na preparação de uma Europa republicana;
7º – os exércitos de Napoleão tinham muitos militares de outras nacionalidades, adeptos fervorosos da revolução francesa;
8º - se o militar fosse inglês seria “Count of Lippe” que os algarvios nunca perceberiam como condelipa; mas se fosse francês, embora de ascendência germânica seria “Comte de Lippe”, que os algarvios perceberiam como condelipa;
9º – os militares só comem comida feita por pessoas da sua confiança que os acompanhavam e também nunca pediriam pratos regionais e portanto essa palavra nunca passaria para o povo. Condelipa é uma palavra da língua popular; as classes de maior estatuto social sempre disseram conquilha;
10º – o facto de os algarvios perpetuarem na memória algo relacionado com os militares franceses, não deve ter sido de bom tom para o período pós-invasões francesas. Assim, aldrabou-se como se diz na língua popular.
Esta é a minha tese. ❐
BIBLIOGRAFIA
PAULA, Rui M.; Lagos – evolução urbana e património; edição de Câmara Municipal de Lagos; Lagos, Outubro de 1992.

domingo, 4 de julho de 2010

Questões do português

02 de Abril de 2006

As Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett fizeram-me estudar novamente as Invasões Francesas de 1807-1811 e verifiquei que, desde o início, o Algarve foi ocupado por regimentos franceses e isso levou-me a outra ordem de pensamentos: exatamente à Praia de S. Roque e a uma espécie de bivalves que lá se apanham na altura das marés grandes. Aquele cujo nome varia de lugar para lugar onde é apanhado; em Lisboa são cadelinhas e cá no barlavento são conquilhas ou condelipas.
Se nos quisermos debruçar sobre o assunto, acho que, com estes bivalves aconteceu o mesmo que com muitas outras coisas que temos: foram os de fora que nos ensinaram a reconhecer e a aprender a gostar daquilo que temos e não damos a nossa menor atenção até que um dia chega alguém de fora e nos mostra como é bom.
Se tomarmos atenção à palavra conquilha, ela é uma adaptação da palavra francesa conquille e certamente não é pela erudição da população do barlavento, mas sim porque os soldados franceses já conheciam este género de alimento e ensinaram aos nativos a cozinhá-los para eles e claro que quem cozinha, prova e gostaram e adoptaram o nome para conquilha e o alimento.
No entanto, reza a lenda que não foi só a soldadesca que gostou das conquilhas. Diz-se que havia um general ou um comandante francês de Napoleão Bonaparte cujo passatempo favorito era apanhar conquilhas na Praia de S. Roque (até Alvor): era o conde de Lippe. Certamente algum português perguntou aos seus soldados franceses, em português, apontando para o conde:
- Ele, que faz?
E o soldado francês, que não tinha estudado português, teria respondido:
- Conde de Lippe. (pensando que lhe estariam a perguntar quem ele era)
O português, de certeza, que foi ter com ele, porque somos muito curiosos, e disse-lhe:
- Condelipa?
√ Sim.
O comandante teria no pensamento a sua pessoa e o lacobrigense aquilo que ele estava a apanhar.
Imediatamente se pôs a imitar o general e este ria-se do jeito do português e o português ria-se de ver o conde de Lippe a rir-se e ia enchendo os bolsos de condelipas.
Quando ia chegando a casa, sai-lhe a mulher a caminho e pergunta-lhe:
→ Que andaste tu a fazer que trazes os bolsos e as calças todos molhados? (meio a rir, meio séria).
Ele diz-lhe, muito atrapalhado:
- São condelipas.
→ E isso serve para comer?
- O comandante diz que sim.
→ Ponho isto a cozer numa panela com água e depois logo se vê.
Assim passou a existir mais uma palavra nova na nossa língua – condelipa para designar aquela espécie de bivalves. ❐

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Problemas do português

02 de Maio de 2005
Sempre que se vem para Lagos temos, à entrada de Odeáxere, um erro ortográfico crasso em letras garrafais: - parece que não incomoda ninguém. Tudo isto deve ser fruto dos tempos de grande ignorância que vivemos onde a lei é: quanto mais ignorante, mais integrado e bem-vindo. Afinal, não incomoda a sua presença.
Então, se pronunciamos Odiáxere, estamos a usar uma palavra que se formou por aglutinação e cuja primeira palavra é ODE que em árabe quer dizer rio, caudal. Assim temos: Odeceixe, Odelouca, ....
Também pronunciamos passiar e até agora é erro escrever assim, pois deve ser escrito passear, veranear, óleo, ...
Claro que estas coisas podem fazer muita confusão nas cabeças dos miúdos e graúdos que temos e depois, ... 