Relendo a Obra Poética I de Sophia de Mello Breyner Andresen estes são os poemas que com dificuldade seleccionei. Poemas escritos em 1947:
CORPO A CORPO
Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde nunca ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça. (p.57)
RECONHECI-TE
I
Reconheci-te logo destruída
Sem te poder olhar porque tu eras
O próprio coração da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas
II
Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim é que eu fui triste
Sempre. Tu depois só me destruíste
Com os teus passos mais reais que os meus. (p.130)
QUANDO
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta.
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta. (p.145)
Passo a transcrever poemas escritos em 1950:
EU CHAMEI-TE PARA SER
Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei. (p.161)
SONETO
Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.
Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.
Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas do oceano. (p.185)
INVENTEI
Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender. (p.242)
Do livro O Tempo Dividido de 1954
IV
Por que será que não há ninguém no mundo
Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar
E todos a contarem o futuro
Como se fosse o único presente
Olhos criavam outras as imagens
Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança ❐
VII
Como é estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio p’ra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber ❐
Assim os claros filhos
Assim os claros filhos do mar largo
Atingidos no sonho mais secreto
Caíram de um só golpe sobre a terra
E foram possuídos pela morte.❐
Dia
Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia. ❐
Primeira liberdade
Eu falo da primeira liberdade
Do primeiro dia que era mar e luz
Dança, brisa, ramagens e segredos
E um primeiro amor morto tão cedo
Que em tudo que era vivo se encarnava. ❐
Praia
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de braços. ❐
Saga
Aos outros dei aquilo que não eram
E por isso depois me arrependi.
Um homem morto em tudo o que perdi –
E olhos que são meus e não me esperam. ❐
Promessa
Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade. ❐
Santa Clara de Assis
Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.
Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida;
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.❐
Do livro MAR NOVO de 1958
Cante Jondo
Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.❐
O teu rosto
Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte
Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido. ❐
Profetas falsos
Profetas falsos vieram em teu nome
Anjos errados disseram que tu eras
Um poema frustrado
Na angústia sem razão das primaveras
Porém eu sei que tu és a verdade
E és o caminho transparente e puro
Embora eu não te encontre e no obscuro
Mundo das sombras morra de saudade. ❐
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua. ❐
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não. ❐
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