= AS MINHAS LEITURAS =
J. R. Whitaker Penteado no seu livro Relações Públicas nas empresas modernas relata-nos assim o nascimento das Relações Públicas:
“As Relações Públicas constituem uma das raras actividades humanas que se iniciou numa data certa e cujo crescimento pode ser rigorosamente acompanhado através de uma cronologia precisa. Da mesma forma que o Brasil é talvez o único país do mundo que tem na Carta de Pero Vaz de Caminha a sua certidão de nascimento, as Relações Públicas começaram para a História num incidente perfeitamente conhecido da vida de um homem que existiu, em corpo e espírito, e que se chamou William D. Vanderbilt. Não teve uma carta por certidão de nascimento, mas apenas uma frase – a frase infeliz que, no ano de 1873, num momento de ira, pronunciou aquele potentado dos Caminhos de Ferro dos Estados Unidos da América do Norte
- “O público que vá para o diabo!”
Atrás dessa explosão de nervos tensos de William D. Vanderbilt revelava-se toda uma história sombria de excessos tanto mais condenáveis porque se processavam através da exploração em grande do homem pelo homem, uma das consequências patológicas da Revolução Industrial.
Que excessos foram esses que a Revolução Industrial desencadeou?
Quer-nos parecer que a maneira mais objectiva de responder a essa questão é limitar-nos a caracterizar os excessos naturais da ambição humana quando a Era Mecanicista da Revolução Industrial atingiu o seu paroxismo. O sublinhado revela a posição mental em que nos colocamos para apreciar esses tristes capítulos de um evento radiante da história da humanidade sobre a Terra. Pensamos, como o filósofo, que como homens e mulheres que somos, nada nos estranha que pertença à condição humana. A ambição e a sua contrapartida, o desprendimento podem assumir - e nos momentos de crise geralmente assumem – proporções exageradas, monstruosas até. A descoberta da máquina – e da sua força inédita e espantosa nos processos de produção – veio simplesmente revelar, em toda a sua crueza, aquilo que todos nós estávamos fartos de saber: que homens e mulheres não são anjos e até mesmo, sob determinadas condições, podem agir como demónios. Admitida essa premissa, não nos devemos espantar com os excessos que foram cometidos num determinado período da revolução industrial, do homem contra o homem. A deificação da máquina, num dado momento, vilificou o homem. Isto já se havia verificado em religiões antigas, como entre os fenícios, que alimentavam Baal-Molok com os corpos jovens das suas virgens e dos seus mancebos; e os exageros de uma concepção individualista perante o poder da máquina iriam consistir, durante algum tempo, numa espécie de religião ateia: a antiquíssima devoção e culto às riquezas materiais.
Os industriais ingleses têm talvez, uma desculpa. A de nunca – antes da máquina ao serviço da produção – se haver consubstanciado conjuntura igual para propiciar tamanho volume de riquezas e através do seu uso discricionário, de poder. Fenómeno idêntico, embora de proporções reduzidas, ocorreu mil vezes durante a história: os egipcíos conheceram-no muito bem e depois deles os persas, os gregos e tantos outros povos, dentre os quais os romanos que, como os demais, ficaram devendo a sua perdição ao excesso de riqueza e de poder. O arrebanhamento indiscriminado dos primeiros trabalhadores juntos, como animais, nas primeiras fábricas infectas, de certa maneira repetiu, no século XVIII, as proezas bárbaras dos construtores das pirâmides do Egipto, assim como o trabalho das mulheres e das crianças nas minas representou, para os europeus da época, a escravidão dos brancos nos moldes do que sempre se fizera em África. Jornadas de trabalho de dezoito horas, salários de fome, castigos corporais, exterminação maciça de populações obreiras, tudo serviu aos potentados da indústria nascente, para o culto da máquina em detrimento do ser humano.
Somente desta vez houve uma distinção fundamental e nova entre os processos de exploração antigos e os modernos. A produção trazia na sua substância os imperativos do consumo. A loucura furiosa do enriquecimento através da produção maciça das massas acabou rebentando de encontro às muralhas rochosas e duras do consumo: a necessidade de consumir salvou o ser humano da condenação de produzir. Todavia, esta foi uma evidência que demorou mais de cem anos para se fazer sentir. Ela surgiu em toda a sua plenitude exactamente naquele dia em que Vanderbilt explodiu em Nova Iorque, mandando que o público fosse para o diabo ...
As circunstâncias são bem conhecidas através da narração primorosa de Edward Bernays. Aconteceu que o comodoro deu ordem para suspender o tráfego num pequeno ramal cujos resultados financeiros estavam a ser negativos. Apanhado de surpresa nas estações de embarque, de um dia para o outro, o público reagiu provocando desordens. Como sempre acontece nestes casos, a polícia interveio e disparou as suas armas contra o povo enfurecido. Houve mortos e feridos. Nem por isso o tráfego do ramal foi restabelecido. Durante alguns dias continuaram as desordens.
Para fazer a cobertura jornalística destes acontecimentos o secretário do Times – obscuro jornal nova-iorquino nessa época – chamou um foca. Em linguagem, foca é o novato, o reporter principiante, o que recebe sempre as missões mais difíceis, senão impossíveis para divertimento dos veteranos. - Quero que você obtenha uma entrevista exclusiva com o Comodoro William D. Vanderbilt. Se conseguir você ganha uma primeira página e uma semana de salário extra.
O novato – de quem o cronista não refere o nome - lá seguiu para a confluência da Lexington Avenue com a Rua 42, onde já se erguia, naquele fim de século, o poderoso edifício da New York Central. Não deve ter percebido os sorrisos maliciosos dos veteranos, todos eles perfeitamente conscientes da total impossibilidade de se conseguir uma entrevista exclusiva com um dos mais poderosos e prepotentes tycoons dos Estados Unidos.
E também, como sempre acontece nestas histórias de jornalistas principiantes, o foca anónimo acabou por conseguir o impossível: foi recebido pelo inacessível presidente dos Caminhos de Ferro. A entrevista, como não podia deixar de ser, desenvolveu-se de maneira tumultuosa e interpelado pelo jornalista sobre as providências que deveria tomar para restabelecer o tráfego – única maneira de satisfazer os anseios de uma pobre população operária, à qual faltavam outros meios de transporte para se deslocar das suas casas para os locais de trabalho – o Comodoro Vanderbilt exasperado pela ousadia, acabou expulsando o reporter da sua sala berrando, enquanto dava murros na mesa: - O público que vá para o diabo!
Foi exactamente essa a frase que o secretário do jornal aproveitou para abrir a manchete da edição do seu jornal, adornando-a com a fotografia do comodoro.
Em circunstâncias normais, o incidente deveria ter morrido ali. Vivia-se numa época em que os grandes homens de empresa, norte-americanos, encastelados nas suas fortunas nababescas, faziam o que bem entendiam, sem outras cogitações que não fossem aquelas ditadas pelos seus interesses individuais e imediatos. A opinião pública era apenas uma abstracção. Mesmo que existisse, não poderia jamais ter a veleidade de manifestar-se. Todos os grandes órgãos de informação estavam, de uma forma ou de outra, atrelados aos interesses dos poderosos do momento e só publicavam o que lhes era mandado de cima. Ninguém se preocupava com o interesse público, pois tudo quanto existia era o entrechoque violento dos interesses individuais – os robber barons compraziam-se em entredevorar-se num banquete apocalíptico do qual o consumidor dos produtos ou o usuário dos serviços se limitava a fazer parte da ementa. Não existia, pois nenhuma possibilidade para que uma escandalosa manchete, colocada na primeira página de um pequeno e inexpressivo jornal de Nova Iorque – tão pequeno e tão inexpressivo que podia dar-se ao luxo de continuar sendo independente – causasse qualquer celeuma no país, perturbando os banquetes de Lúculo dos tubarões da época.
O impossível, porém, às vezes acontece e foi isto exactamente o que se passou com a desastrada entrevista do Comodoro William D. Vanderbilt. A manchete berrante caiu sob os olhos dos nova-iorquinos e edições sucessivas do Times começaram a sair das bancas por toda a cidade para a mão de leitores ávidos. O secretário do jornal sentiu a reacção pública e aprofundou-se no assunto reverberando o desprezo dos poderosos pela opinião pública e denunciando aquele e outros excessos que se verificavam todos os dias. Desencadeou-se assim uma extraordinária e corajosa campanha jornalística, inicialmente em Nova Iorque e depois disseminada por toda a imensa extensão do país, insistindo na mesma tónica. Essa campanha imortalizou na história do jornalismo norte-americano os famosos removedores de esterco, repórteres audaciosos e apaixonados, que começaram a contar as tenebrosas manobras que se sucediam nos bastidores das empresas contra os interesses do público. A corrupção que lavrava como uma peste nas esferas do governo também conheceu a sua rua da amargura. Os grandes criminosos começaram a ser apontados e, com extraordinária violência, começou a afirmar-se a Opinião Pública – instância suprema da avaliação dos tycoons e seus fantoches disfarçados de homens do governo.
Uma vez desencadeada a torrente, não mais foi possível estancá-la. O público norte-americano recusou-se a ir para o diabo. Ao contrário da imprensa, numa luta de todos os dias e todas as horas, esmerou-se em dar o troco. Mandar para o diabo os exploradores, os corruptos, toda uma cáfila que fizera da livre iniciativa o direito libertário de escravizar todo um povo à sua inextinguível ganância.
Nessa época desordenada, nasceram as Relações Públicas como actividade individualizada nas grandes empresas sob o fogo inimigo. Destruídas as amarras da justa revolta popular contra os excessos do lucro a qualquer preço, os homens da imprensa foram forçados a perceber que alguma coisa deveria ser feita - tinha de ser feita - para que o país não mergulhasse num abismo sem fundo. O próprio Vanderbilt, menos de um mês depois das manchetes do Times, publicou nas primeiras páginas de todos os jornais norte-americanos uma declaração desmentindo a entrevista e oferecendo ao público a propriedade das acções da New York Central. Durante os cinquenta anos que se seguiram àquela manhã tempestuosa de 1873, à medida que se consolidava o novo poder de opinião, iam-se caracterizando as relações públicas no âmbito das empresas – uma forma de reconhecimento declarado do respeito que essas mesmas empresas passavam a dispensar àquela opinião pública tantas vezes ignorada.
À sobranceria derradeira de Vanderbilt com o seu “O público que vá para o diabo!” sucedeu a novidade da resposta de Ivy Lee, um corrector de anúncios de jornal que, este sim, foi o legítimo precursor dos actuais profissionais de relações públicas:
- O público tem de ser informado!
Desta informação ao público, fez a sua profissão pioneira e atingiu o ponto máximo da sua carreira quando John D. Rockfeller, em pessoa, foi procurá-lo para submeter à sua competência profissional os seus problemas de relações públicas.
Ivy Lee foi o artífice de uma das mais espectaculares transformações da imagem de um homem perante a opinião pública de um país. Quando o procurou, por volta de 1920, John D. Rockfeller era um dos personagens mais odiados e odiosos da história dos negócios. Tinham vindo a lume todas as acções tenebrosas desse homem para construir o seu império de petróleo, uns sucessão sórdida de roubos, violências, corrupção e até mesmo assassínios. Ivy Lee teve a seu crédito não apenas a transformação da imagem – o que poderia ser confundido com uma forma reles de propaganda – mas a transformação do próprio homem, que se dispôs a colocar parte da sua fortuna ao serviço da humanidade através da Fundação Rockfeller, que até hoje conhecemos.
Os modestos correctores da imprensa, por força das ligações pessoais que mantinham com os jornalistas, foram sendo, pouco a pouco, atraídos para essa actividade: cooperar com a imprensa para levar ao público a informação certa no momento oportuno. A pura propaganda – na sua acepção mais vulgar – foi sendo substituída pelas relações públicas – uma actividade nova que nascia sob o signo da autenticidade, com o objectivo específico de informar correctamente. E essa nova actividade, depois dos trabalhos pioneiros de Ivy Lee e outros, corporificou-se numa profissão definida quando Edward Bernays, logo após a Primeira Guerra Mundial, abriu as portas em Nova Iorque do primeiro escritório de Relações Públicas para servir o seu primeiro cliente, o Governo da Lituânia, que desejava ter a sua nação reconhecida entre os povos do mundo. (...)”
Assim foi!❐
mailto:eu.maria.figueiras@gmail.com
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